sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Ao(s) Jorge(s)!

Por sorte tivemos a oportunidade de visitar o Mercado Central... à procura das raízes humanas tantas vezes dispostas nestes centros económicos das cidades. No mercado havia de tudo, abundando vegetais, sementes, castanha (de cajú), malaguetas e outras especiarias ou iguarias.

Mas não foi a comida que me chamou a atenção. Foram os olhos pretos, pequenos e rasgados do Jaime, um reguila de quatro anos, que me abraçou com um sorriso contagiante e que deu à máquina fotográfica um minuto de atenção. O Jaime sorriu, brincou comigo, e depois correu - fiquei na dúvida se era suposto correr atrás dele e brincar à apanhada...



Acabei por ficar onde estava e deixei-o correr entre os corredores do mercado, percebendo que ele os conhecia de cor, de tantos passos lá dados. Virei-me para o lado e vi outro trio, mais velho, mais "duro", mais batido pela vida de menino de rua. O da esquerda, apresentava-se possante e confiante, marcando claramente o espaço territorial que sem discutir lhe reservei, conservando a distância que me permitia interagir com ele sem o ofender, sem o perturbar. À direita, debaixo de um boné de pala, um olho espreitou e, quando provocado, sorriu, envergonhado, ainda escondendo o resto de si.

Sobrou o Jorge, deitado, meigo, descalço, estranhamente feliz, indiferente ao cenário envolvente e às amarguras da vida. O Jorge, protegido pelo seu irmão mais velho - à esquerda - pouco falava português, recebendo várias traduções do irmão para responder às minhas perguntas.



Comecei pelo nome, apresentei-me e estendi a mão. Reparei em alguma surpresa, alguma impreparação para este acto aparentemente raro ou desconhecido; mas o aperto lá ocorreu. Perguntei-lhe porque não tinha sapatos e o sorriso fugiu, dando lugar à tristeza mais sincera que vi nos últimos tempos - tinham-lhe roubado os chinelos, afirmou, escondendo-se com vergonha no silêncio. Sem dramatizar disse "grande azar, pá" e perguntei-lhe "quanto custam uns chinelos?". Abrindo uma brecha no silêncio ele respondeu-me baixinho "cinquenta meticais".

Perdi-me no tempo, repetindo vezes sem conta um cálculo básico e elementar: "50 MTS a dividir por quarenta dá 1.25 EUR - não!, não pode ser! 50 MTS a dividir por quarenta...". Sim, apercebi-me da monumental insanidade daquele momento e de como alguns problemas são simples de resolver. Distanciei-me, aproveitando que alguém me chamara, vasculhei as moedas nos bolsos e vi 70 MTS por lá esquecidos, cunhados com 5 e com 10. Regressei em direcção ao Jorge, debrucei-me sobre ele e disse-lhe "aqui tens!, cinquenta meticais para comprares uns chinelos!", enquanto lhe passava as quatro moedas de dez e duas moedas de cinco. O Jorge, meio incrédulo, contou o dinheiro e, para meu espanto, não sorriu - olhou para mim e num português atrapalhado mostrou-me uma moeda de dois meticais, no lugar da moeda de cinco que julguei ter-lhe dado. Troquei a moeda de dois por uma de cinco e, enquanto dizia "que tonto que sou!", vi o Jorge levantar-se do chão e voar para fora do mercado. "Nunca mais o vejo", pensei com pena.

Distribui as moedas sobrantes pelos restantes miúdos, deixando ao pequeno Jaime a moeda de dois meticais, pensendo que sendo o mais novo não reparia ou não daria importância - e funcionou. Voltei ao centro do mercado e com uma sensação de satisfação pelo Jorge e de profunda convulsão emocional pela forma tão simples - e barata - de melhorar a vida de uma criança, perdi-me em divagações evasivas enquanto os meus olhos se perdiam nas pessoas e nas coisas.

Peixeiras...


... nas bancas de sementes e frutos ...



... nas vendoras distraídas ...



... e nos legumes cansados de não serem comprados.



Nisto, o Jorge e o irmão surgem a correr na minha direcção. O Jorge agarra-me na mão e diz-me "olha!" e sem perder um segundo baixei os olhos e vi-lhe os pés, afastados do chão frio e sujo, a flutuar sobre uns chinelos novos, imaculados, coloridos e quase tão brilhantes como os seus profundos olhos. Ele estava radiante, e o meu coração fez-lhe companhia, para que não passasse mais um momento só. O irmão (acho que não lhe cheguei a perguntar o nome), abraçado ao Jorge, protector e cúmplice, disse-me com postura de homem feito: "tu és gente boa!" e estendeu-me a mão. Senti-me pequeno ao pé daquele gigante, daquele lutador que descansou as rugas contraídas por saber o irmão melhor.

Deram-me outro aperto de mão e partiram, de regresso a uma vida que engana a tristeza e a miséria com sorrisos rasgados retirados não sei bem de onde. E nuns minutos roubados ao tempo, e com pouco, tão pouco, ganhei tanto, tanto mais do que dei!...

3 comentários:

Ana disse...

Que maravilha!

Ilda disse...

Lágrimas de comoção pela alegria que deixaste e recebeste.

Pai Zé disse...

Que história bonita!
Recordei uma outra de António Tabucchi, que li há anos, passada num hotel de Maputo: só havia um par de sapatos para os empregados que os calçavam à vez para irem servir às mesas. Iam orgulhosos e felizes mostrando o brilho dos sapatos para quem estivesse mais distraído...
A "família" dos Jorges de Moçambique já vem de longe.
Obrigado pela tua história que nos fez a todos mais felizes com a alegria que deste a esse Jorge.
Bjs do Pai